Analisaremos a força da coisa julgada ante os desafios da verdade biológica, levando em consideração o surgimento do exame de DNA.
Com o surgimento do exame de DNA, a questão da imutabilidade da coisa julgada, nas ações de investigação de paternidade, passou a ser questionada, trazendo a lume a discussão sobre a relativização desse instituto.
Até meados da década de 1990, o entendimento predominante era o da irreversibilidade das decisões transitadas em julgado. Somente se admitia a sua modificação em sede de ação rescisória, nos casos previstos em lei.
Diante da evolução científica, com a precisão trazida pelo exame de DNA, nasceu a discussão da possibilidade de ser relativizada a coisa julgada nas ações de investigação de paternidade, quando essa já houver sido declarada.
Torna-se necessária a indagação acerca da sustentação da imutabilidade do julgado, advindo da presunção relativa, consubstanciada numa decisão judicial que forma uma verdade ficta, distante de uma verdade real.
A discussão maior gira em torno da relativização da coisa julgada material. Ainda que enumerada constitucionalmente como direito fundamental, ela não pode apresentar caráter absoluto, quando em confronto com outros princípios também protegidos pelo sistema jurídico. A Constituição da República lista outros direitos fundamentais, tais como o acesso à ordem jurídica justa, a proporcionalidade, a legalidade, a boa-fé, a dignidade da pessoa humana, entre outros.
Considerando os conceitos de coisa julgada formal e material, defende-se aqui a tese de que, nas ações de investigação de paternidade, não ocorrerá o fenômeno da coisa julgada material quando não houver exaustão na produção das provas, permitindo-se a sua ocorrência somente nos casos em que foram esgotados todos os meios de prova convencionais e, inclusive, o exame pericial de DNA.
A doutrina e a jurisprudência vêm consolidando o entendimento de que, em se tratando de ações de estado, que tratam de direitos indisponíveis da pessoa, a autoridade da coisa julgada deve ser relativizada, sob pena da segurança jurídica se sobrepor à própria justiça.
É o embate entre dois princípios constitucionais: o da segurança jurídica, certificado pela coisa julgada e o direito de estado de filiação, princípio da dignidade humana.
O rigor do instituto da coisa julgada, em inúmeros casos, conduz à injustiça, o que leva ao entendimento de que devem ser impostos limites à imutabilidade dos efeitos do julgado, buscando-se sempre a verdade real, e não a verdade do trânsito em julgado de uma sentença. Isto, principalmente, quando é sabido que o Estado não proporciona à pessoa amplo acesso aos meios probatórios essenciais à averiguação da paternidade.
Na maioria das vezes o indivíduo não possui recursos para arcar com o preço do exame de DNA, e o Estado informa que não há possibilidade de realizá-lo de pronto, em razão do elevado número de pessoas aguardando na mesma situação. Diante disso e de inúmeros outros fatores, nos deparamo-nos com casos em que ou a paternidade é injustamente declarada com base em provas escassas ou, até mesmo, declarada pela revelia do investigado, que se queda inerte por desconhecer as consequências jurídicas do seu ato.
Diante de decisões declaratórias da paternidade, que poderão ser contraditadas no futuro, seja pelo surgimento de um DNA negativo, seja pela descoberta de que o indivíduo não pode ter filhos, ou até mesmo pela simples revelação da verdadeira paternidade pela mãe biológica ao suposto pai, o argumento da força da coisa julgada é questionável, tendo em vista que ali se encontram interesses indisponíveis de todas as partes.
Não é crível que o rigor formal, justificado pela segurança jurídica, sobreponha-se à justiça, impedindo o indivíduo de obter a prova necessária em juízo para declarar a verdadeira paternidade. Trata-se de um direito de mão dupla, e não apenas de uma das partes interessadas.
Em precedente firmado no Superior Tribunal de Justiça concluiu-se pela relativização da coisa julgada nas questões de estado, em que o interesse público avulta com maior intensidade na efetivação do direito da personalidade, baseando-se nas transformações familiares e nas descobertas genéticas, que colocam o magistrado diante do grau máximo de certeza, nada justificando que se ponha no mundo jurídico o que não está na verdade biológica (Recurso Especial 226.436-PR, de relatoria do Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira).
Nesse sentido, o Ministro do STJ José Augusto Delgado comenta: “Há de se ter como certo que a segurança jurídica deve ser imposta. Contudo, essa segurança jurídica cede quando princípios de maior hierarquia postos no ordenamento jurídico são violados pela sentença, por, acima de todo esse aparato de estabilidade jurídica, ser necessário prevalecer o sentimento do justo e da confiabilidade nas instituições.”.
Com a promulgação da Lei n. 12.004/2009, que alterou a Lei n. 8.560, consolidando o entendimento de presunção da paternidade nos casos em que o suposto pai se nega a realizar o exame de DNA ou submeter-se a qualquer outro meio científico de prova, restou claro o entendimento de que a recusa aos exames torna verdadeira a paternidade.
Essa presunção não deve ser mantida quando do surgimento de prova nova, realizada inclusive com o consentimento das duas partes envolvidas. Não há porque perpetuar uma situação de fato inverídica, punindo o indivíduo com uma declaração falsa, atribuindo a ele uma responsabilidade que não é sua.
De acordo com o texto constitucional e infraconstitucional, por tratar-se de direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, pode-se questionar a condição de filho, ou de pai, com base em novos elementos, reabrindo a discussão na justiça.
Considerando essas questões e o entendimento predominante na doutrina e jurisprudência pátrias, tem-se que a coisa julgada deve ser preservada quando realmente proteger o direito que está, em tese, garantido à parte. Mas quando ela, como instituto processual, obstaculizar o exercício de um direito que não pôde ser exercido por insuficiência de provas, em determinada época, não deverá sobrepor-se à verdade real.
Não se trata de assolar o Estado com novas ações de investigação de paternidade ajuizadas posteriormente à aludida declaração. Ocorre que, tendo o indivíduo prova nova e robusta que contraria a decisão judicial, deve ser concedido a ele o direito de questionar aquela declaração.
Assim, diante da fragilidade das provas colhidas no curso das ações de estado, entende-se por demais injusto aceitar a imutabilidade das verdades oriundas das decisões judiciais, presumidas pelo julgador e atribuídas aos indivíduos por toda a vida, implicando inclusive em direitos sucessórios.
Como visto, os direitos da personalidade devem ser sopesados com os demais direitos consagrados no texto constitucional. Quando ocorre a colisão de interesses e valores presentes na sociedade é aceitável reduzi-la a uma colisão de direitos fundamentais, averiguando o peso e valor de cada um.
Todas essas considerações nos levam a ponderar e repensar o equilíbrio dos valores de justiça e de segurança. No Estado Democrático de Direito não deve ser permitida a superestimação da proteção constitucional da coisa julgada, uma vez que essa proteção é relativa diante de situações como esta.
Admitir que as normas ditadas pelo Estado se sobreponham ao direito ao verdadeiro reconhecimento à origem da pessoa e, portanto, de sua dignidade, é aceitar que esse direito perca seu principal suporte para uma sociedade desprovida de qualquer discernimento entre o justo e o injusto, entre o certo e o errado.
O estado de pai e filho não impera devido a uma sentença judicial, mas nasce com o ser humano, se desenvolve pela vida e cria vínculos muito mais complexos do que aqueles nascidos em um processo. Não se impõe a ninguém uma filiação biológica, tampouco afetiva.
Nesse contexto de diversas opiniões, princípios e ideologias impera a validade dos valores consagrados ao longo dos anos. Diante de prova nova autoexcludente, resta ao Estado fazer valer esses valores, alcançando a verdade e a justiça.
Por último, fazendo uma analogia à ideia de justiça, cabe a citação do que foi dito por Antígona, na tragédia grega de Sófocles:
“Mas Zeus não foi o Arauto delas para mim, nem essas leis são as ditadas entre os homens pela Justiça… e nem me pareceu que tuas determinações tivessem força para impor aos mortais até a obrigação de transgredir normas divinas, não escritas, inevitáveis: não é de hoje, não é de ontem, é desde os tempos mais remotos que elas vigem, sem que ninguém possa dizer quando surgiram.”