A ideia de dignidade humana está associada à proteção das circunstâncias indispensáveis para uma existência plena de sentido. Essa ideia traduz o estado do homem enquanto indivíduo, afastando-o da condição de objeto à disposição de interesses alheios, impondo limites às ações que não consideram a pessoa como um fim em si mesma.
A Constituição Federal de 1988 consagrou no artigo 1º, inciso III, a dignidade da pessoa humana, como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Em seguida, no artigo 5º, inciso III, preceitua que “ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante”.
Segundo o Professor Oscar Vilhena Vieira, se olharmos a carta de direitos fundamentais, especialmente no artigo 5º, encontraremos um razoável conjunto de direitos que circulam diretamente na órbita do direito à dignidade. Sustenta o professor que, em todas essas ocasiões, o constituinte está proibindo que a vida seja extinta ou que seja submetida a padrões inadmissíveis, da perspectiva do que se compreenda por vida digna.[1]
É nesse contexto que surge o embate Vida X Dignidade Humana, quando nos propomos a investigar a validade dos testamentos vitais e das diretrizes antecipadas perante o ordenamento jurídico brasileiro.
Os testamentos vitais, também conhecidos como living will, testamentos biológicos ou testament de vie, são documentos elaborados por uma determinada pessoa que, mediante diretrizes antecipadas, realizadas em situação de lucidez mental, declara a sua vontade, autorizando os profissionais médicos, no caso de doenças irreversíveis ou incuráveis, em que já não seja mais possível expressar a sua vontade, a não prolongarem o tratamento. Nesses casos, o paciente em fase terminal ou em estado vegetativo autoriza a suspensão de tratamentos que visam apenas adiar a morte, em vez de manter a vida.
Em geral, estes testamentos aplicam-se nos casos de condições terminais, sob um estado permanente de inconsciência ou um dano cerebral irreversível que não possibilite a capacidade de a pessoa se recuperar e tomar decisões ou expressar seus desejos futuros. Nesse contexto, entra a aplicação do testamento vital, estabelecendo limites para aplicação do tratamento, a fim de que sejam tomadas medidas necessárias para manter o conforto, a lucidez e aliviar a dor, inclusive com a suspensão ou interrupção do tratamento.
Trata-se de um tema bastante delicado, em que, de um lado, encontramos a proteção à vida e, de outro, o direito a uma morte digna, com a libertação da dor que implica uma vida “sem vida”.
É certo que a vida é o bem maior, traduzindo-se como bem indisponível, da qual derivam todos os demais direitos. Contudo, de que vale a vida sem dignidade? Cabe aqui a indagação sobre a relativização desse direito nos casos de pacientes terminais, com doenças incuráveis ou em estado vegetativo. Essas pessoas não gozam da vida em sua plenitude. Não se pode afirmar sequer a existência de vida digna, pois o indivíduo se encontra privado de sua liberdade e do exercício de muitos de seus direitos.
Embora existam os adeptos da eutanásia, não se está aqui defendendo esta prática. Os testamentos vivos ou diretrizes antecipadas são instrumentos de manifestação de vontade com a indicação negativa ou positiva de tratamentos e assistência médica a serem ou não realizados em determinadas situações.[2] Trata-se de uma escolha do paciente de se submeter ou não a determinado tratamento, que não lhe trará a cura, mas poderá adiar a sua morte.
Nesse contexto, assim como o paciente participa das decisões acerca do tratamento indicado pelo médico, emitindo a sua opinião sobre os procedimentos a serem adotados sobre a sua saúde e a sua vida, deve o médico, também, ouvir o paciente quando da indicação de determinado tratamento.
O médico de hoje, dentro das suas atribuições, indica e recomenda o tratamento adequado. O paciente, dentro da autonomia que lhe é assegurada, aceita ou não a recomendação, exercendo poder de escolha para tomar decisões sobre si.
Como dito, não se trata da eutanásia, cuja prática consiste em pôr fim à vida de um enfermo incurável, a seu pedido, em razão de um sofrimento insuportável, de maneira assistida, cujo ato é praticado por um terceiro.
Aqui estamos tratando da morte digna. O indivíduo acometido por uma doença grave e incurável, cujo tempo de vida contribui apenas para a sua degradação e sofrimento, não pode ser ignorado. É ele quem padece da dor oriunda da sua enfermidade. Embora seja uma decisão difícil de ser aceita pela família, que deseja somente a presença do ente querido, fazendo de tudo para que ele aqui permaneça, em determinados casos, por melhor que sejam as intenções, esse desejo acaba por aprisionar o paciente, prolongando a sua dor.
Embora a grande maioria da doutrina assegure a inviolabilidade da vida, não existem direitos absolutos. Os princípios da dignidade humana e da autonomia da vontade possuem valor igual ou, dependendo de cada caso, maior que o princípio da inviolabilidade à vida. Cada caso é único. E, de acordo com a história daquele indivíduo, devem ser sopesados tais princípios e valores.
Diaulas Costa Ribeiro, em artigo publicado nos Anais do V Congresso de Direito de Família, narra a história de Ramón Sampedro, que ficou paraplégico de 23 de agosto de 1968 a 12 de janeiro de 1998, lutando, durante esses 29 anos, pelo direito de obter sua liberdade, “aprisionada num corpo morto”. Em seu artigo, o autor transcreve uma carta de Ramón:
“É um grave erro negar a uma pessoa o direito a dispor da sua vida porque é negar-lhe o direito a corrigir o erro da dor irracional. Como bem disseram os juízes da Audiência de Barcelona: viver é um direito, mas não uma obrigação. Todavia, não o corrigiram, nem ninguém parece responsável para corrigi-lo.
Aqueles que esgrimem o direito como protetor indiscutível da vida humana, considerando-a como algo abstrato e acima da vontade pessoal, sem exceção alguma, são os mais imorais. Poderão disfarçar-se de doutores em filosofias jurídicas, médicas, políticas ou metafísico-teleológicas, mas desde o momento em que justifiquem o absurdo, transformam-se em hipócritas.
A razão pode entender a imoralidade, mas não pode nunca justificá-la. Quando o direito à vida se impõe como um dever, quando se penaliza o direito à libertação da dor absurda que implica a existência de uma vida absolutamente deteriorada, o direito transformou-se em absurdo, e as vontades pessoais que o fundamentam, normativizam e impõem em tiranias.”.[3]
A questão é delicada, pois a vontade declarada do paciente nada mais é do que o seu posicionamento diante desse embate. Nesse aspecto, a morte digna desejada pelo indivíduo nada mais seria do que deixar a natureza agir por si própria, no que a medicina não pode remediar.
Não se trata de fazer cumprir a declaração de vontade do indivíduo nos moldes por ele deixados, mas realizá-la dentro dos limites impostos pela lei. Sendo assim, os testamentos vitais poderiam ser feitos e cumpridos apenas nos casos de doenças irreversíveis ou terminais, cujo tratamento destinado a prolongar a vida do enfermo provocaria, inevitavelmente, dor e sofrimento.
No caso de o paciente solicitar a eutanásia ativa, por exemplo, o médico estaria proibido de executá-la, pois é ilegal no Brasil. Porém, nos casos em que a doença levar inevitavelmente à morte, o direito de autodeterminação do paciente deve ser respeitado.
De fato, não é possível a previsão de todos os casos pela lei. Cada quadro clínico tem um desenvolvimento próprio. Porém, compete à família e ao corpo clínico responsável avaliar a situação, verificando se a vontade do paciente se enquadra dentro dos limites previstos pela lei.
Para isso, não basta apenas o desejo de não sofrer, mas o desejo de não ver prolongada uma vida de dor, quando existe a certeza da irreversibilidade da doença.
NOTAS
[1] VIEIRA, Oscar Vilhena. Direitos Fundamentais. Uma leitura da Jurisprudência do STF. São Paulo: Ed. Malheiros, 2006, p. 67.
[2] RIBEIRO, Diaulas Costa in Família e Dignidade Humana. Anais do V Congresso Brasileiro de Direito de Família. Organizador Rodrigo da Cunha Pereira. Belo Horizonte, p. .275.
[3] RIBEIRO, Diaulas Costa in Família e Dignidade Humana. Anais do V Congresso Brasileiro de Direito de Família. Organizador Rodrigo da Cunha Pereira. Belo Horizonte. P.279.